quinta-feira, 31 de março de 2005

FESTIVAL SANTOS DA CASA 2005

A NAIFA
QUA, DIA 6 DE ABRIL, 21h30, Auditório do ISEC (Junto ao Continente)





Os primeiros sons de «Canções Subterrâneas», por sugestão dos acordes da guitarra, invocam um bulício de taberna e colocam o ouvinte na expectativa de escutar um rosário de lamentos; uma sucessão de ais, no seu pior nados e criados nos trejeitos do estilo dos intérpretes, no seu melhor nutridos pelos seus sentimentos. As primeiras impressões porém são enganadoras: são filhas do hábito, do mau hábito de pensar o fado e a tradição musical como um dogma, com suas escrituras, seus santos e mártires, pregadores e seguidores autorizados apenas a pequenas revisões respeitadoras da doutrina. A ilusão, criada por A Naifa no início do seu primeiro álbum, termina exactamente ao fim do minuto e quarenta e seis segundos da introdução.

Começa então outra realidade – a bem dizer paralela - imaginada por Luís Varatojo (Peste & Sida, Despe e Siga, Linha da Frente) e João Aguardela (Sitiados, Megafone, Linha da Frente), criada com Maria Antónia Mendes e Vasco Vaz , que não é doutrinal nem revisionista, mas que se usa dos códigos comuns para explorar outras formas de inspiração a partir da raiz que é a canção popular de Lisboa e as palavras de uma nova e activa geração de poetas.


Como em anteriores trabalhos, Luís Varatojo e João Aguardela exploram em «Canções Subterrâneas» o território da poesia portuguesa, temperando-a – por assim dizer – com a estética musical urbana e contemporânea característica do seu labor. Os caminhos desta procura levam A Naifa, por um lado, ao encontro de uma nova geração de poetas (onde se acham valores estimados e conhecidos como Adília Lopes, José Luís Peixoto ou José Mário Silva e Tiago Gomes, mas também as vozes de Rui Pires Cabral, José Miguel Silva, Rui Lage, Eduardo Pitta, Ana Paula Inácio, Carlos Luís Bessa e Nuno Moura) e, por outro lado, a recorrer aos cânones do fado e do experimentalismo electrónico como matéria-prima de uma visão da cultura portuguesa que não se conforma com a clonização de modelos estrangeiros como forma de vida, e menos ainda com a cristalização a que muitos querem forçar as chamadas músicas tradicionais. Quer dizer: uma visão que não aceita a subserviência nem o destino, antes assenta os pés na terra, bem junto à raiz das coisas, para criar um discurso imaginativo e universalista – e, por que não dizê-lo, esteticamente progressista.

Uma das razões porque «Canções Subterrâneas» é um disco tão estimulante quanto ousado está na forma como integra discursos estéticos e musicais que o senso comum quer antagónicos, melhor, quando os articula de forma a que as palavras dos poetas e a música são um organismo novo e não unidades distintas cosidas por artifícios. De certo modo, é como se a construção destas canções partisse do princípio que a tradição musical portuguesa se vem desenvolvendo sem cortes nem rupturas nem preconceitos, isto é, numa contínua evolução. A verdade é no entanto diferente e, como é de seu costume, mais crua. O ideal, embora generoso, uma quimera.Em circunstâncias destas corre-se o risco de transformar a utopia em mera hipótese de trabalho e o seu resultado em exercício de estilo mais ou menos cerebral. Mas a – direi – quimera utópica é também uma inestimável fonte de inspiração, um alimento da vontade de ir além e ver o que está depois do horizonte. Assim, é natural que neste primeiro álbum de A Naifa, aonde a voz límpida e bem timbrada de Maria Antónia Mendes nos leva (e a de Rui Duarte em «Poema com Domicílio»/«Questão da Noite») é a um mundo paralelo onde a vontade determina o conteúdo e dá forma à imaginação, por outras palavras, a um lugar de reflexão sobre o passado e de fruição do presente, que, para o futuro, propõe com determinação a necessidade de continuar a sonhar com uma cultura e uma estética urbanas, dinâmicas e populares – principalmente sem complexos nacionalistas nem clonagens supostamente cosmopolitas.

Rui Monteiro
Abril 2004

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