terça-feira, 30 de agosto de 2005

ROSTU LIMPU

Sagas





Chamam-lhe Sagas, um nome de paz que desde os primeiros momentos dos Micro se tornou sinónimo de MCing em estado puro. É um veterano, claro, num movimento que teima ainda em manter-se sob a superfície. Mas as coisas estão a mudar. "Rostu Limpu" é o seu álbum de estreia a solo. No crioulo do título adivinha-se uma postura: alguém que se apresenta de forma transparente, sem máscaras, frontal e verdadeiro, sem truques. "Rostu Limpu" é o mais fiel retrato deste MC, que também é produtor e que tem África no sangue e na alma. Que tem África, sobretudo, na música. E essa, para já, é a grande marca de distinção de "Rostu Limpu" e de Sagas: uma enorme musicalidade não só nos beats, mas também na forma como as palavras são ditas, uma enorme musicalidade na maneira de estabelecer a ponte entre hip hop, África e soul.

A trindade dos Micro – D-Mars, Nel’Assassin e Sagas – tem agora disponíveis discos a solo que revelam exactamente porque é que o som do grupo de "Microlandeses" sempre foi tão diferente de tudo o resto no panorama nacional. D-Mars procurou sentir o pulsar da noite em "Filho da Selva" e estudou o jazz em "The Pyramid Sessions" como Rocky Marsiano, o grande DJ Nel’Assassin revelou a sua vertente de produtor em "Timecode" e agora Sagas mostra-nos o seu "Rostu Limpu". São três direcções diferentes, três sentires diferentes que fazem todos parte de uma mesma dedicação ao universo do hip hop.

Sagas, um "sobrevivente da rima", como faz questão de afirmar em "Quem és tu?", oferece-nos em "Rostu Limpu" um álbum atravessado por um positivismo desconcertante. Talvez porque, apesar de tudo, apesar das crises e das dificuldades, Sagas saiba que a música é equivalente de esperança. Ou talvez porque acredite que é no indivíduo que reside toda a força, capaz de sustentar mudança, evolução, crescimento. E Sagas mostra essa força em temas onde o crioulo, que traduz a sua ascendência cabo-verdiana, se cola na perfeição com o português, criando uma nova postura musical. Exactamente porque não há diferenças: as palavras, em português ou em crioulo, são recursos, ferramentas que Sagas domina na perfeição, equilibrando sentido e flow como poucos.

Musicalmente, há outra revolução. Em primeiro lugar porque, tal como os seus dois companheiros dos Micro, assume o papel de produtor principal criando beats carregados de musicalidade, que não são meras bases para debitar rimas. Os beats de Sagas são significantes por si mesmo e quase sempre têm espaço para respirar. Inteligentemente, Sagas não afoga nunca a música para a sacrificar às palavras. Existe um equilíbrio sabedor, próprio de quem sabe que uma coisa não existe sem a outra. E existe muita soul, no sentido mais clássico do termo, na forma como se constrói a música, com um bom gosto tremendo ao nível dos arranjos.

Com convidados como Milton (dos Philarmonic Weed e agora também nos Cool Hipnoise), D-Mars, Nel’Assassin, Nigga Poison e um novo e secreto valor de nome Michael (que dá voz ao refrão de "Alegria de rimar"), "Rostu Limpu" revela-se um álbum com espaço para o murmúrio e o grito, com espaço para o amor e o ódio, mas este último só às coisas más, que nos prendem e impedem de crescer e evoluir. Há, enfim, retratos, recados e confissões. Para a família, para os amigos, para a sua geração.

Este é o Rostu Limpu de Sagas. O seu único rosto. E a sua única música: forte, frágil, honesta, verdadeira, directa, africana, urbana e actual. Ouçam…

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