quinta-feira, 24 de outubro de 2013

A NAIFA DE REGRESSO



















"As Canções d'A Naifa"
4 de Novembro

Outubro.

É de noite e a criatura arrasta-se entre o breu e os ocasionais holofotes que querem matá-la. A criatura, alta por natureza e firme por formação, arrasta-se. Cabisbaixa e apodrecida.

Enfia-se num beco evidente. Um beco que em dois ou três passos tratará de lembrá-la do seu fim. Pouco lhe importa. Na realidade, não pensa. Nem no que faz nem no buraco onde se meteu.
 
Não chega a dar dois passos. No caminho saltam-lhe quatro criaturas, estas humanas, vultos negros estranhamente alumiados por um candeeiro de parede. Cada um tem uma naifa. Quatro naifas apontadas à miserável e morredoura criatura.
 
Acorre à criatura a ideia de salvar a vida que lhe resta:
- O que querem de mim? Nada tenho para dar. Levaram-me tudo.
A morena vivida, a quem os olhos brilham, fala-lhe pelos quatro com a sua voz sobrenatural;
- Ninguém te quer tirar nada. Pelo contrário. Viemos devolver-te a poesia e as canções que perdeste. Queiras tu ou não queiras. Gostes ou não gostes do que lhes fizemos. Talvez te abandone essa dormência fétida. Trazemos-te os poetas que não deixaram morrer a coragem. Trazemos-te até os que lidaram a censura com olés. Devias ouvir mais sobreviventes. Trazemos-te as canções que não são nossas, destes reis magros que te fazem oferendas de chino na mão. São tuas, mas esqueceste-te delas. Temos a esperança de que, quando voltares a ouvir Ary, o Lobo Antunes e o Mourão Ferreira, te libertes dessa condição, desse fado de subalterno. Talvez nada disso te salve deste fado, esse lugar onde te cristalizaste nos sonhos dos turistas, mas inquietação trar-te-á de certeza. Inquietação é a última das canções que aqui encontras.

A criatura estremece no desconforto que há muito não conhecia:
- Não sei se podem fazer-me isto. Vocês sabem quem sou?
A morena aponta-lhe a naifa e, antes de ajustar uns auscultadores, no que à criatura resta da cabeça, atira-lhe com amor:
- Toda a gente sabe quem tu és, Portugal. Tu é que te esqueceste.

Pedro Gonçalves

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