sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

O SEGUNDO DISCO DE PEIXE

A desagregação de um conjunto leva inevitavelmente a um tipo de centrifugação estilhaçante, onde os fragmentos são um produto da irradiação de uma sinergia anterior agregadora de uma totalidade homogénea. Isto acontece freneticamente no mundo da música quando partes decidem pôr termo a um corpo, formando novos corpos à parte.
 
O caminho de Peixe, um dos mais notáveis guitarristas portugueses da actualidade, é assimum caminho de deriva e diáspora, próprio de artistas em nome próprio que se vão afastando da carruagem do conjunto. Para trás, e para lá dos já míticos Ornatos Violeta, Peixe deixa colaborações com os Pluto, Zelig, DEP e a Orquestra de Guitarras e Baixos Eléctricos.

Essa empresa unipessoal começou o seu percurso com Apneia (2012), o seu primeiro álbum a solo e imerecidamente votado a uma certa apneia crítica. Um título apto para quem responde pelo nom de plume de Peixe, apontando para uma suspensão de fôlego metálica a partir de uma técnica de nylon, deixava entrever uma matriz clássica numa entrega paisagisticamente ácida. Esta via totalmente instrumental estende-se agora a Motor, o sucessor ou retomador da linha de continuidade acústica adivinhada no seu primeiro esforço.

Com Motor, e apesar da relativa surpresa do nome, convocando desde logo um certo temor pela motosserra musical onde o virtuosismo se agrilhoa na monotonia motorizada das capacidades espúrias do seu executante e aliena integralmente o seu escutador, Peixe nada aparentemente não tanto em rodas dentadas ou pistões de virtuosismo, mas, e não obstante ser um virtuoso, em máquinas orgânicas mais ambientais, diria blocos de corais embebidos em líquido amniótico. A sua identidade é ambiental. O problema com este tipo de qualificação é a sua temível relação com elevadores e outros espaços de espera e de suspensão de tempo não propriamente apreciados por músicos de assinatura. Motor, apesar de prolongar a apneia através da contínua suspensão da respiração por via da prótese da guitarra, e desse ponto de vista levar a uma respiração motorizada, não se reduz a uma agregação de sons mais ou menos inteligentes para preencher espaços, nem tampouco de um passatempo egotista de um virtuoso. É antes um tempo para habitar um espaço. A sua audição repetida convoca, aliás, o princípio do prazer que só a repetição oferece sem a sensação de dèjá-écouté, apesar de várias faixas repetirem internamente esse equilíbrio de prazer através da reiteração de frases. Este mosaico constitui um tipo de Aranjuez da lezíria, onde uma fulgurante espacialidade se alia à minúcia da nota certa, como se Peixe fosse uma espécie de recolector de cerejas na guitarra. Sem procurar impor-se ao escutador, Motor, longe do ruído monotonal da máquina, é à uma recém-conhecido, amigo do utilizador e companheiro de alma. Aliás, o carácter contrastivo do seu título com a slow-food que nos é servida é também visível na capa do disco (como se Paula Rego tivesse pintado Os Comedores de Batatas).

A dificuldade em alijar a mera pirotecnia da execução, a qual, por mais respeitável que seja enquanto actividade de ginasta, deixa poucos espaços para serem preenchidos pelo escutador, em nome da composição e da beleza harmónica do conjunto, é um atributo dos melhores. A improvisação aliada à repetição de blocos estruturantes faz de Motor um disco fundamentalmente coeso, em que a guitarra, à uma melíflua e precisa, sugere, no seu dedilhar de grandes espaços, uma decantação vibrátil de regato percutindo um travelling de arpejos e visitando lugares de excepção, entre os quais “lamento imenso” ou “improvisação #22”, apesar de aqui e ali desertar uma certa hipnose do conjunto em favor da inclusão da resonator e da flauta transversal que convocam a polivalência de composição de Peixe, especificamente na escrita para teatro.

No mapa português tem sido tão admirável quanto surpreendente uma certa garimpagem recente no domínio da guitarra acústica. Há repentinamente um punhado de nomes que desafiando a rarefeita tradição acústica portuguesa (excepção feita, evidentemente, à guitarra portuguesa) tem desenhado um percurso admirável de técnica e inovação. Se quisermos dedicar-nos ao exercício de arranjar uma mancheia de guitarristas de assinatura, não é possível excluirmos Peixe deste lote que não é nenhum cardume. E Motor é certamente um disco que não pode permanecer em apneia auditiva.

Daniel Jonas


Sem comentários: